22/07/2020

Afinal de contas, o que são dados pessoais sensíveis?

Ainda há muitas dúvidas sobre quais dados pessoais são ou não sensíveis, mas a maior parte delas tem a resposta na própria LGPD. Há, é verdade, alguns pontos mais polêmicos. Só para já ir provocando curiosidade, vou lançar duas perguntas: as fotografias são dados pessoais sensíveis? E os dados relativos à identidade de gênero?

Antes de responder, é preciso saber o que a Lei nos diz a respeito. E ela é bem específica: dado pessoal sensível é aquele “sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”.

Qualquer dado que esteja fora da lista não é dado sensível. Pelo menos por enquanto. “Calma lá, como assim, por enquanto?”. Já explico: além da possibilidade de o legislador mudar (novamente) a lei, é possível que, em algum momento, seja questionado judicialmente se o rol do art. 5º, II é taxativo (é o que está ali e ponto) ou exemplificativo (é tudo aquilo e mais um pouco). Tá, mas com qual fundamento?

Se você olhar bem, vai perceber que os dados classificados como sensíveis são, via de regra, aqueles que podem ser usados para discriminar o titular. Vamos dar uma olhadinha.

Origem racial ou étnica: não é segredo para ninguém que, ainda hoje, as pessoas são discriminadas em razão de sua origem racial (no sentido antropológico do termo) ou étnica.

Convicção religiosa: há menos de 100 anos, sob o regime nacional-socialista de Adolf Hitler, milhões de judeus foram perseguidos e assassinados. Aqui no Brasil, em pleno 2020, não são incomuns os casos de preconceito contra as mais variadas religiões, desde as de matriz africana até as cristãs. 

Opinião política: essa aí bastaria dar uma olhada na timeline do Facebook ou até mesmo no grupo de WhatsApp da família. Mas, indo um pouquinho além do nosso círculo, temos uma série de exemplos graves de perseguição política na história recente. Na nossa vizinha Venezuela, a perseguição aos opositores é uma realidade ainda hoje. Por aqui mesmo, durante a ditadura Vargas, houve forte perseguição aos comunistas, mesma época em que os nacional-socialistas alemães perseguiam comunistas e social-democratas do outro lado do oceano. Mais recentemente, nos chamados “Anos de Chumbo”, a perseguição política aos comunistas no Brasil resultou na morte, tortura e desaparecimento de centenas de pessoas. Enquanto isso, o Partido Comunista da União Soviética e o Partido Comunista Chinês, do outro lado do porrete, perseguiam e matavam milhões de opositores.

Dados referentes à saúde: quem viveu os anos 1980 sabe o estigma que carregavam as pessoas contaminadas com o vírus da AIDS. O risco de discriminação em razão da saúde, no entanto, não é apenas social, mas também econômico. Planos de saúde e seguros de vida, por exemplo, poderiam usar esses dados para aumentar o preço de seus planos ou até mesmo negar cobertura.

Vida sexual: as possibilidades de discriminação em razão da vida sexual são vastas, inclusive em relação à frequência ou à quantidade de parceiros. Vale notar que, ao contrário do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR), a LGPD não fala em orientação sexual. Eu, Raphael, entendo que, mesmo sem a menção explícita na lei, os dados relativos à orientação sexual também são sensíveis. Não vejo como separar orientação sexual de vida sexual. Já quanto à identidade de gênero a coisa é um pouco diferente, mas depois falarei disso.

Dados genéticos: apesar da previsão expressa em lei, os dados genéticos também poderiam ser considerados sensíveis quando pudessem revelar predisposição para doenças (dados referentes á saúde) ou características raciais ou étnicas, por exemplo. Não podemos esquecer, ainda, de síndromes genéticas como as de Down, Edwards, Patau, Turner, Kleinfelter, dentre outras.

Dados biométricos: os dados biométricos também podem revelar características raciais ou étnicas (cor da pele, formato dos olhos) e indicar dados referentes à saúde (a exemplo do cruzamento de dados como peso e altura). Têm grande potencial de nocividade, especialmente com o uso de tecnologias como o reconhecimento facial. 

Explicada essa primeira parte, vamos às duas questões controversas que levantei lá no começo: as fotografias e os dados relativos à identidade de gênero.

“Tá, mas porque diabos as fotografias seriam classificadas como dado sensível?”. A resposta é, em um primeiro momento, bastante óbvia: podem-se extrair de uma fotografia informações relativas à origem racial ou étnica. Dependendo o caso, referentes à saúde ou até mesmo à convicção religiosa (alguém usando burca, quipá ou crucifixo, por exemplo). E o que a LGPD nos diz a esse respeito? Nada. Caberá à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e/ou ao Judiciário resolver a questão.

“Então você lança a pergunta e não responde?” Exatamente, mas posso dar a minha opinião a respeito. Se olharmos atentamente para o GDPR, veremos que o tratamento de fotografias não será considerado automaticamente um tratamento de dados sensíveis, apenas quando processadas por meios técnicos que permitam a identificação inequívoca ou a autenticação de uma pessoa. O mesmo vale, é claro, para vídeos. Assim, defendo que a questão deve ser analisada caso a caso, conforme o tratamento realizado. Mas lembre-se: não sou juiz, não sou ministro e não sou da ANPD.

E quanto à identidade de gênero? Bem, essa é pior ainda. Como eu já disse ali em cima, eu defendo que os dados relativos à orientação sexual devem ser considerados sensíveis, mesmo que não haja menção explícita na lei. Já quanto à identidade de gênero, penso que não. E já aproveito para explicar duas coisas de uma vez.

A primeira delas é que, no meu entendimento, o rol de dados pessoais sensíveis descrito na lei é taxativo. Pensar de forma diferente levaria a uma enorme insegurança jurídica, especialmente em tempos nos quais muita gente vê ofensa ou preconceito em qualquer bobagem. Pensem no sujeito hipotético que tem um iPhone 9 e se sente discriminado por não conseguir acessar um determinado aplicativo que exige, no mínimo, um iPhone 10. Levando ao extremo o entendimento de que o rol seria exemplificativo, ele poderia alegar que o dado relativo ao modelo de seu telefone seria sensível, pois fez com que fosse discriminado pelo desenvolvedor do software.
Aí vamos à segunda – e polêmica – questão. No meu entendimento, os dados relativos à identidade de gênero não são sensíveis (do ponto de vista da LGPD). Não ignoro que possam ser usados para fins discriminatórios, o que é lamentável e desprezível, mas isso não os transforma em sensíveis do ponto de vista legal.

Segundo os próprios militantes da causa, orientação sexual e identidade de gênero são coisas bem diferentes. Enquanto a primeira tem reflexos diretos na vida sexual, a segunda não tem (ao menos não necessariamente). A identidade de gênero diz respeito à autoimagem, a como a pessoa se sente, e não à vida sexual. Assim, não faz parte de nenhuma categoria de dados sensíveis, sendo, à luz da lei, um dado pessoal comum.

É claro que não acho que o caso esdrúxulo do iPhone 9 seja sequer parecido com o da pessoa discriminada em razão de sua identidade de gênero. O problema aqui é quanto à segurança jurídica: depois que o Judiciário abre uma porta, por mais que a razão pareça justa, nunca se sabe o que mais vai passar por ela. E nosso histórico me leva a crer que esse é um risco que não vale a pena correr.

Por fim, vale destacar que, independentemente de serem considerados sensíveis ou não, os dados referentes à identidade de gênero não podem ser tratados para fins discriminatórios. Além de elencar entre seus princípios o da não discriminação, a LGPD assegura à ANPD o poder de realizar auditoria para a verificação de aspectos discriminatórios em tratamento automatizado de dados pessoais. Mais que isso, o tratamento discriminatório pode, conforme o caso, ser considerado crime, sujeitando o infrator a penas que podem passar de 6 anos de prisão.
Por Raphael Di Tommaso

Publicado em 22/07/2020 às 18:51

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